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Conheci Francisco nos primeiros dias de julho. Pequeno, inquieto, amarelo. Ainda não cantava direito, levei para casa assim mesmo. No terceiro dia achei que respirava ofegante "Deve estar se acostumando com o ambiente". Adorou comer couve, acostumou-se a comer maçã, devorou o jiló. Em agosto começou a ensaiar o canto.

 

Clara chegou duas semanas depois para fazer companhia. Branca e com um apetite mil vezes maior que o de Francisco. Brigaram na segunda semana e foram para gaiolas separadas. Agora que estão separados não querem ficar longe um do outro. Quando as gaiolas ficam fora do ângulo de visão piam até se verem de novo.

 

Em setembro Francisco cantou; em outubro calou-se e passou a esfregar o bico nas grades da gaiola. Esfregou tanto que as penas em volta do bico caíram. Ficava cansado só em pular de um poleiro para o outro, o bico aberto buscando o ar que nunca parecia ser suficiente. Levei ao veterinário. "Está com problema de pulmão". Com certeza já veio assim da pet shop. Toma antibiótico, coloca no sol da manhã, suspende o banho, evita friagem.

 

O apetite não foi afetado, já não fica cansado, mas as penas em volta do bico ainda não voltaram e o canto cedeu lugar a um som seco de bico batendo no bico. Volta no veterinário que comenta a possibilidade das cordas vocais de Francisco terem colado e ele nunca mais voltar a cantar.

 

Amar não é complicado, o complicado chega quando a expectativa que alimentamos não se concretiza. O contrato invisível que fiz com Francisco dizia que em retribuição ao teto, alimento e carinho seu canto alegraria o ambiente, mas em troca a alegria que ele me oferece é a de estar se recuperando.

 

Nem sempre o retorno que esperamos que uma pessoa nos dê em um relacionamento é o retorno que ela está disposta ou mesmo que ela pode dar. A precisão da matemática que nos ensina que dois mais dois é igual a quatro não se encaixa na matemática dos relacionamentos. Na verdade relacionamentos têm mais a ver com química onde a mistura gera uma outra substância diferente das substâncias que a formaram. Pessoas levam consigo sua história, suas experiências e a cada vez que dormimos com alguém corremos o risco de acordar diferentes e com uma pessoa diferente daquela com quem deitamos na noite anterior, mesmo que seja a mesma pessoa todos os dias. O amadurecimento nos ensina que nem sempre nossa expectativa será preenchida e que nós mesmos muitas vezes deixamos de preencher a expectativa de alguém.

 

O chato da convivência é que passamos a saber mais do que gostaríamos da pessoa com quem dividimos o espaço. Antes de Francisco, para mim, canários não tinham problemas e sua vida era destinada ao canto e ao pular de poleiro em poleiro esbanjando leveza e graça. Somente a convivência para mostrar que eles têm problemas de calos, que precisam aparar as unhas periodicamente, que são sujeitos à infecções respiratórias e que suas cordas vocais podem colar. A convivência pode se transformar no túmulo do encantamento quando nos faz tirar as lentes cor de rosa que usamos para enxergar as pessoas e nos mostra que de perto ninguém é cem por cento bonito, correto ou saudável. Em contrapartida nós também passamos a ser observados sem as lentes cor de rosa do convívio social e assim no "elas por elas" dos relacionamentos vamos aprendendo que expectativas e convivência ajustam-se mutuamente com o passar do tempo e que não fazer disso mais um motivo para levantar a bandeira da reclamação é questão de convivência madura e saudável.

 

Todo relacionamento que estabelecemos tem um contrato invisível, não verbal, aceito de forma tácita, feito de silêncios e permissões mas que precisa estar claro para ambas as partes ou, em algum momento, alguém vai quebrar as regras que o outro julgava estarem claras e aceitas e que na verdade não estavam tão claras assim. Não tenho mais expectativa de que Francisco cumpra com a expectativa que era minha e não dele, hoje minha expectativa é a de que Francisco esteja bem.

Francisco me ensinou que talvez seja este o segredo dos relacionamentos sem dor; a aceitação do outro com suas limitações e ainda assim mantê-lo no alvo de nossos votos de carinho e bem estar sem perder a consciência e a noção de nossas necessidades ou abrir mão delas.

Seu relacionamento não está satisfatório? Já checou em que cláusula ele não está sendo atendido? Quem sabe não é você que está quebrando alguma regra ou mesmo incluindo regras que só estão claras na sua cópia do contrato? Francisco também me ensinou que talvez a felicidade nos relacionamentos não seja a satisfação de nossos desejos, mas a perene adequação da expectativa com o conhecimento que a convivência proporciona.

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