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Na postagem anterior falei de Francisco, o meu canário mudo, mas hoje preciso mudar os nomes dos personagens e omitir dados que possam identifica-los lhes garantindo o sigilo. A história que passo a relatar aconteceu recentemente, em dezembro passado.

 

_ Bom dia. Preciso de uma consulta com Dr Marcos.

_ Tem hora marcada? Do outro lado da linha respondeu uma voz masculina em tom seco.

_ Infelizmente não.

_ Os horários estão todos tomados. Completou a voz transparecendo impaciência.

_ Poderia tentar um encaixe? Preciso muito falar com ele.

_ Os horários estão todos tomados até o final do ano e a agenda de 2017 ainda não está aberta. Impossível fazer encaixe; ordem do Dr Marcos. Passar bem. O homem do outro lado parecia uma metralhadora de “nãos”.

_ Estranho... sempre consegui um encaixe. Costumo ir no final do dia, não me importo em ser o último a ser atendido. Preciso falar com ele.

_ Os horários estão todos tomados até o final do ano e a agenda de 2017 ainda não está aberta. Impossível fazer encaixe; ordem do Dr Marcos. Passar bem.

_ Como é seu nome?

_ Meu nome é Alexandre. Passar bem.

 

O que fazer quando você precisa consultar-se com o seu médico e encontra uma barreira intransponível? Vamos falar a verdade; ninguém procura um médico porque está com saudades dele. Você procura seu médico porque precisa. O atendimento telefônico que recebi de Alexandre contrastou com todo o relacionamento que tive com Dr Marcos até então. No dia seguinte tentei novo contato e fui atendido da mesma maneira. Resolvi tentar pessoalmente e no dia consecutivo fui até o consultório logo cedo. Quando cheguei já havia um senhor de bigode branco que estava lá aguardando, teve a mesma ideia que eu e iria tentar o encaixe pessoalmente. Alexandre ainda não havia chegado e eu não tinha a menor ideia de quem ou como ele era.

 

Dez minutos depois chegou um homem de feições sérias que deduzi silenciosa e acertadamente ser Alexandre. Ele chegou, retirou os fones de ouvido, guardou a mochila e posicionou-se atrás do balcão. Obedecendo a ordem de chegada fiz sinal para que o senhor de bigode branco fizesse a sua solicitação.

 

_ Meu amigo ... Iniciou o homem de bigode branco ... eu estou aqui para falar com Dr Marcos. Não tenho hora marcada e preciso de um encaixe.

_ Os horários estão todos tomados até o final do ano e a agenda de 2017 ainda não está aberta. Impossível fazer encaixe; ordem do Dr Marcos. Passar bem. Alexandre não deixou o senhor de bigode terminar a sua fala. Sentou-se diante do computador sem sequer dirigir o olhar para a pessoa com quem falava e deu a mesma resposta dada a mim por telefone. No mesmo tom seco e impaciente e completou... Dr Marcos não virá hoje. Está viajando e só estará no consultório amanhã.

_ Então eu tentarei amanhã. Respondeu resignado o homem.

_ Não posso garantir nada .. disse Alexandre levantando-se e falando enquanto se dirigia para alguma sala lá dentro aumentando o tom de voz para ser ouvido enquanto se afastava sem olhar para trás: São ordens dele.

 

O homem aproveitando a ausência de Alexandre olhou-me, deu um sorriso cansado e disse referindo-se a Alexandre: Ele é muito intransigente. Dizendo isto foi embora ressaltando que retornaria no dia seguinte. Eu aguardei o retorno de Alexandre.

 

_ É você que é Alexandre. Perguntei.

_ Sim. Respondeu digitando algo no celular.

_ Estou aqui pelo mesmo motivo.

 

Alexandre repetiu a resposta seca e impaciente voltando a sentar-se diante do computador. Informei que retornaria dois dias depois já que o senhor que acabara de sair retornaria no dia seguinte.

Diante de tanta dificuldade para conseguir falar com meu médico fiquei muito frustrado. Sou paciente do Dr Marcos há anos e nunca tinha sido tratado com tanta frieza. A frase dita por Alexandre “Ordens do Dr Marcos” não me soava verdadeira. Conheço Dr Marcos, sei que é incapaz de deixar uma pessoa sem atendimento. Sua sala de espera vive cheia não só porque atende bem, mas porque tem cuidado pelas pessoas. Tentei falar diretamente com Dr Marcos ligando para o telefone dele, porém não retornou as ligações e concluí que era porque estivesse em viagem.

 

A figura e o atendimento de Alexandre não saiam da minha cabeça. Estaria Dr Marcos de acordo com aquilo? Eu não queria ter que procurar outro médico. Dr Marcos tem toda a minha ficha, conhece minha história. Ir a outro médico significava recomeçar um relacionamento que demora a se consolidar e o meu com Dr Marcos já estava funcionando tão bem. Como percebi que a opinião que eu tinha de Alexandre era a mesma que a de outro paciente, concluí que deveria ser algo que vinha acontecendo sob a anuência de Dr Marcos.

 

Intimamente decidi que se não conseguisse falar com Dr Marcos dali a dois dias, iria desistir e procuraria outro médico. Relacionamentos se rompem e se constroem todos os dias e Dr Marcos não é o único médico bom na cidade. Mesmo sendo um bom médico, não valeria a pena expor-me ao mau atendimento de Alexandre. O atendimento dispensado por Alexandre vinha impregnado de uma aura de mal estar. Não eram só as palavras secas, ele criava mau ambiente e constrangimento com sua atitude de falar sem encarar o interlocutor nos fazendo sentir como se estivéssemos atrapalhando e pedindo um incômodo favor, como se as pessoas procurassem o médico por diversão e como se não pagassem por isto.

 

Chegou a quinta-feira. Armei-me de paciência para enfrentar Alexandre. Decidi que mesmo que ele negasse o encaixe eu iria esperar Dr Marcos chegar. Aproveitaria para expor minha opinião e comunicar minha despedida.

 

_ Bom dia Alexandre. Cumprimentei o funcionário do consultório.

_ Bom dia. Respondeu com os olhos grudados no celular.

_ Vim tentar o encaixe com Dr Marcos.

_ Ok. Pode tentar. Ele hoje vai chegar mais tarde. Respondeu secamente sempre olhando o celular.

 

Respirei fundo e optei por tentar ser mais educado do que ele.

 

_ Tudo bem. Você se incomoda se eu esperar? Posso sentar ali?

_ Vai querer ser atendido?

_ Se for possível, ficarei imensamente grato.

 

Dirigi-me à sala de espera em silêncio, ninguém havia chegado. Estávamos apenas eu e Alexandre. Decorridos cinco minutos Alexandre surgiu com atitude completamente diferente, inclusive o tom de voz.

 

_ Ele vai atender o senhor. Pode me dar sua carteirinha para eu adiantar o atendimento? Disse um solícito Alexandre que até então eu desconhecia. Até me chamou de senhor.

 

Dei para ele os documentos e inexplicavelmente; Alexandre começou a me tratar com atenção, a travar uma conversação onde me relatou um pouco de si e pude entender muito de sua atitude. Alexandre tem experiência profissional na área de TI. Sempre trabalhou com sistemas e computadores em uma grande empresa, mas com a chegada da crise econômica foi demitido. Ficou desempregado por bastante tempo, mas como é amigo pessoal do Dr Marcos ele o colocou para trabalhar ali na recepção para cobrir a vaga que ficou disponível. Alexandre interessou-se em saber sobre o Coaching, falou da filha adolescente, ofereceu café, pediu ajuda para ler as letras pequenas da carteira do plano, brincou, deu um cartão oferecendo seus serviços de informática. Era uma pessoa completamente diferente de dois dias atrás.

 

Não posso dizer que virei amigo de infância de Alexandre, mas posso dizer que depois que ele se permitiu conhecer e que eu retirei o pré-conceito passei a entende-lo. Alexandre simplesmente é uma tartaruga no poste, um peixe fora d’água. Ele está exercendo uma função para a qual nunca foi preparado. sua experiência profissional não o talhou para lidar com pessoas da forma como um recepcionista precisa lidar. Dr Marcos seguindo seu perfil de ajudar as pessoas o colocou em uma vaga disponível para que ele seguisse no mercado de trabalho e ele aceitou porque precisa trabalhar e porque o tempo em que ficou desempregado o ensinou o quanto a crise está grande e sem previsão de melhora.

 

Tudo isto esclarece, mas não justifica a atitude de Alexandre. Por mais que ele seja grato a Dr Marcos ele precisa se modificar muito para encaixar-se no perfil que sua atual atividade exige e Dr Marcos precisa avaliar o quanto está colocando em risco a fidelidade de sua clientela ao deixar uma pessoa que não atende ao perfil exigido para uma atividade que lida com o público, mesmo que seja com a intenção de ajuda-la.

 

Nem todos os clientes de Dr Marcos tiveram a oportunidade que tive de conhecer melhor a história de Alexandre e nem todos que tiverem terão o olhar que tive podendo simplesmente concluir dizendo “E eu com isto?”.

 

Relacionar-se requer habilidade, comunicar-se vai além de falar e escrever. Todos carregamos nossas histórias conosco o tempo todo. Aquilo que a boca não verbaliza sai pelos olhos, pelo olhar, pelo tom de voz, pela postura. A agressividade pode ser a linguagem que a insatisfação, o medo e a insegurança usam para se esconder. Estar atento a estes sinais nos habilita a entender as entrelinhas da linguagem dos relacionamentos e nos capacita a entender melhor o outro.

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